terça-feira, 9 de agosto de 2011

Estudante, em 1964

Em 1964, fui de certa forma, duplamente vítima das circunstâncias.

Desde dezembro de 1962 trabalhava em meu primeiro emprego formal, em Novo Hamburgo, RS.


Em março de 1964, sob o governo de João Goulart, o salário mínimo dobrou de valor. E, os preços acompanharam ou até se anteciparam nestes 100% de aumento.

Minha situação pessoal já estava crítica. Perspectivas sombrias em relação aos estudos, devido aos altos custos de mensalidades, mais gastos com minha manutenção. E, guardava as angústias, que foram se acumulando.

A frustração chegou ao limite, com a questão financeira como estopim. Enquanto os custos aumentaram 100%, meus ganhos subiram apenas 22%. Teria que aguardar até setembro para uma nova melhoria.

Havia estímulos da empresa, como uso liberado de motocicleta, por exemplo.Mas os empresários também se viam em apuros.

Conversando com alguem sobre a situação, talvez tivesse amenizado os sentimentos de frustração. Ou vislumbrado alguma alternativa.

O fato é que de uma hora para outra, sucumbi aos impulsos do inconsciente. Aconteceu uma ruptura psicológica no sentido de fuga da situação. Deveria ser algo temporário, para retomada da normalidade em nova situação, fosse qual fosse. Um momento em que o pensamento era unicamente abandonar, sem medir consequências e nem lembrar de como familiares poderiam ser afetados. Algo como acontece com quem fica meio cego, quando fica muito enfurecido e parte para cima de alguem. Porem, uma fuga psicológica diversa das que levam ao alcoolismo ou drogas, por exemplo.

Simplesmente embarquei num ônibus, e desapareci do ambiente habitual. Isto foi no último dia de junho. Passei a ser procurado, sob as mais diversas hipóteses do que poderia ter acontecido.

Já no segundo dia pensava em retornar, pois o propósito de romper a situação estava cumprido. Mas fiquei como que paralisado, na idéia de como seria sufocante me reapresentar. Na inércia, simplesmente fui prosseguindo em viagem.

Alguns dias após, estava longe do Sul. Cheguei a Salvador, na Bahia, dia 07 de julho.

Parei, e refleti bastante. Seria urgente retornar, ou de pelo menos me comunicar. E tambem decidir sobre o que fazer daí para frente.

Tive então a idéia de procurar um apoio para o retorno. Algo que facilitasse as comunicações. E que fosse algum tipo de intermediação que pudesse aliviar a tensão que imaginava acontecer em simplesmente me reapresentar aos familiares e conhecidos.E se possível, alguma orientação psicológica. Como poderia reparar ou amenizar a dor sentida pelos pais? Como explicar e pedir perdão?

Ironicamente, a partir de então, tornei-me vítima das circunstâncias mais uma vez, mas em outra situação.

A rigor, por ingenuidade.

Fui procurar auxílio da polícia interestadual, Polinter.

Atendido, me encaminharam a um gabinete da Secretaria da Segurança, lá em Salvador.Logo mais, percebi que as circunstâncias me eram adversas. Simplesmente pelo momento que o Brasil inteiro vivenciava naqueles meses imediatamente pós Revolução.

Ora, estavamos na época vivendo um regime de exceção, com a Revolução ainda se consolidando, em plena caça aos chamados subversivos, tais como participantes nos G-11, ou grupo dos onze. Seria eu algum destes, erguendo bandeira branca? Talvez portador de valiosas informações?

Já de saida, me apontaram um canto com um verdadeiro arsenal de armas, dizendo que eram fruto de apreensões. Uma clara insinuação.Pronto. Ficou evidente que, se lá no sul investigavam meu desaparecimento, na Bahia passei a ser um suspeito de envolvimento com algum movimento clandestino.

Minha explicação sobre a razão de apenas estar pedindo ajuda, e sobre as motivações de estar na cidade, não foi convincente. De qualquer forma, seria inusitada mesmo, mas plausível em condições normais da vida política no país.

Então, de um problema de ordem psicológica, que seria passageiro, passei a um trauma até pior.

Ainda bem que fui tratado civilizadamente.

A seguir me convidaram a embarcar num veículo, de forma normal.Como rodaram por alguns quilometros, comecei realmente a ficar temeroso, pois não sabia exatamente o destino. O deslocamento seria para uma outra repartição.

Fiquei muito surpreso quando estacionaram defronte à Casa de Detenção. E mais ainda, quando em seguida me declararam detido, para investigações. Na verdade, não recordo bem sobre estes detalhes, tal foi o choque.

O fato é que permaneci lá, por terríveis 44 dias.

Ainda bem que fui colocado em cela privilegiada, junto a duas pessoas de bom nível de instrução. Um estudante de economia, tido como subversivo. O outro, um fazendeiro de cacau acusado de ser mandante dum assassinato devido a desentendimentos por heranças.

A pior parte, era a alimentação. Dias e dias, a base de pirão de peixe seco.

Visitas, só a de investigador.

O que amenizava, eram as conversas - até de bom nível - com o estudante e o fazendeiro, e a biblioteca. Com tanto tempo disponível, não pareciam ser de muitas páginas, obras de Rousseau e Schumpeter, por exemplo.

Finalmente fui liberado, e em meados de agosto cheguei de volta ao Sul.

Fui recebido em Novo Hamburgo pela amiga de nossa família, Dona Emília, a viúva do Dr. Wolfram Metzler (que foi Deputado Federal entre outras, durante sua vasta atuação pública. Veja biografia à página 44).

Ela ofereceu confortável cama em sua residência. Recuperado do enfraquecimento, procedi a alguns exames de saúde, inclusive eletroencefalograma, com resultados de absoluta normalidade.

Então, retomei as atividades habituais, mudando para Porto Alegre.

Mas, o ano escolar estava comprometido. Tivesse me conformado antes e trancada a matrícula, teria sido doloroso, mas bem menos. Nada daquilo que foi relatado teria acontecido.

Em tudo o que aconteceu, houve de minha parte imaturidade, descuidos e ingenuidade.

Aprendi bastante. Principalmente a de manter sempre a esperança de dias melhores.

Sai fortificado, porque quase sempre posso dizer frente a eventuais contrariedades: O pior já passou! Ou, já passei por algo pior!

Em horas mais difíceis, até ser curioso passa a ser uma vantagem. Pois a gente faz questão de se manter vivo, querendo saber como será o amanhã. Qual a saida encontrada, e por ai vai. Tambem é vantajoso ser otimista. Acreditar que a saida será interessante, com solução adequada.

Na época eliminei o que pudesse trazer lembranças ruins. Mas conservei algumas cartas que recebi bem depois. Esta que reproduzo em parte aqui, serve para mostrar que investigavam sobre minha eventual ligação aos que eram considerados subversivos. Fomos colocados juntos, certamente por equiparação.

(Clique para ampliar)

Felizmente, foi tudo superado!
.